quarta-feira, 26 de julho de 2017

O que me Move! Minha breve infância


Por um tempo acreditei que o que me motivava a ser melhor era o ódio. O ódio por tudo que a vida não me permitia ter. Tenho poucas lembranças boas de minha breve infância, talvez porque eu era uma criança muito curiosa e venho de uma família onde ser curiosa e ser criança são coisas que não combinam. Sou a penúltima de cinco irmãos, quilombola de nascimento, cor e sentimentos, e a lembrança mais doce que tenho de meus anos na roça estão relacionadas ao meu primeiro bicho de estimação: Pedro, meu porquinho barcê. Ele era anão e sua mãe morreu picada de cobra. Meu pai levou ele para nosso casebre de pau a pique, e eu com 4 anos dei mamadeira a ele em uma garrafa de biotônico Fontoura, único remédio que tomávamos que não vinha da "farmácia de são José". Minha bisa sabia das ervas e dizia que o mato tinha cura para tudo e dizia ela que lá era "a farmácia de são José, pega remédio quem quiser". Lá  tinha remédio para tudo.
Mas voltando ao Pedro. Pedro, como eu, era um rejeitado, ninguém de sua raça queria ele por perto, ai eu me apeguei a ele e ele a mim. Cuidávamos um do outro, era bom, posso lembrar dos seus olhos quase azuis me olhando porque eu não parava de falar. Eu contava a ele quando minha irmã me batia e dizia que eu tinha sido encontrada na enxurrada como o porco, por isso eu era gordinha e pretinha. Eu chorava muito antes do Pedro, depois eu não ligava mais pois eu queria mesmo ser igual ao Pedro, ele foi meu primeiro amor, ensinei ele a buscar tudo que eu jogava, depois ganhei um papagaio, mas o Pedro era o Pedro, dormia do lado da cama que eu dividia com meu irmão menor.
Mas os tempos pioraram e eu, Pedro e toda minha família fomos despejados, perdemos nossas terras para o banco que nosso pai não conseguiu pagar. Fomos para cidade mais próxima morar de favor na casa de parentes. Um barracão de 3 cômodos que abrigava 10 pessoas. E o Pedro, ah meu Pedro, virou alimento e eu não o comi, me recusei, chorei o mês inteiro.
Meu pai arrependido me presenteou com um cachorro amarelo de listras pretas, ele era lindo: meu segundo amor. Telefone: foi esse o nome que dei a ele, Telefone. Eu tinha seis anos, nunca tinha visto um telefone mas ouviamos um programa de rádio que tinha um apresentador que sempre falava ao telefone. E havia uma vinheta em que um telefone tocava e alguém dizia 'atende o telefone'.
Ah, eu pensava, deve ser algo muito especial, capaz de fazer a gente ouvir uma pessoa que está longe. De alguma maneira eu imaginava que dando esse nome ao meu cachorro ele me ajudaria a me comunicar com o Pedro, no céu dos bichos. Ah, as crianças! Seria bom se conservássemos essa fé, essa pureza. Telefone se tornou um cachorro enorme e fiel, sempre me protegeu de tudo e todos, morreu aos 8 anos e eu, aos 14 anos, tinha nele um porto seguro.
Muita coisa aconteceu nesses oito anos, mais perdas mais tristezas, fui trabalhar de babá aos 9 anos, cuidava de um bebê de 3 meses, passamos falta do básico, e quanto mais o tempo passava mais raiva eu tinha, era como se cada perda fosse um pedaço de madeira colocado em uma fogueira ainda com brasas.
Ah, minha breve e negra infância! Venho de tantas perdas que eles (Pedro e Telefone) eram a certeza, a única certeza de que tinha algo meu e que me amava acima de tudo. Nessa época eu era a "Xinha", era assim que minha mãe me chamava nos poucos momentos em que ela estava de bom humor. Eu gostava muito porque quando ela me chamava assim significava que ela estava feliz. O cheiro de café torrando, o barulho de sapo coaxando, esses são os cheiros de minha infância da roça.
Mas na cidade, ah na cidade, eu descobri que xinha era patinha gordinha e lenta, e os cheiros que sentia eram das fraldas sujas, os sons da patroa que gritava, gritava. Assim, também sou feita de dissabores, desamores, violações. E lá na casa da patroa meu Telefone não podia me proteger. Era apenas eu e elas e eles.